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Minas e páginas devoradas.


 

Entre os livros do meu pai, encontrei uma biblioteca eclética que refletia sua personalidade paradoxal. Havia volumes de Yogananda, livros Rosa Cruz, de mistérios e filosofias orientais, ao lado de livros militares e guias para soldados e sargentos. Tanto os discos quanto os livros de minha casa, eram um recorte dos anos 70 na classe média brasileira. Austeridade política, educação moral e cívica, ao mesmo tempo em que o interesse por xamanismo, espiritismo e orixás, transbordava nas bancas de jornais.

 

Eu nunca gostei de armas apesar de ter um míssel decorando a sala de minha casa na infância. Desconhecia o contexto social da ditadura militar até os meus 18 anos, quando entrei na universidade federal. No interior de Minas, no meio onde cresci, eu não tinha acesso ao questionamento político. Minha alienação era grande mas eu não percebia, vivi um período em uma vila militar simples, com livros de ovnis, de hipnose, poder da mente e sobre batalhas em projeções astrais durante a Segunda Guerra Mundial entre médiuns alemães e russos. Espionagem interdimensional, entre outros fascínios que causariam desdém em intelectuais.

 

Primeiro filho adotado de uma família de 4 irmãos, a segunda filha Hélia, também adotada. Naquela época os filhos adotivos trabalhavam no serviço da casa, enquanto os filhos naturais eram mimados. Isto com o tempo criou fraturas nas relações interpessoais, e o mistério sobre as adoções nunca foi revelado, é um sussurro atrás de portas que não mais existem. O mundo material e o etérico em desencanto ou desencontro, imprimia no meu pai algo encantador, mas pode ter sido também a sua derrocada. 

 

Sérgio era um homem forte e sensível, sinestésico e místico. Preferia a paz à guerra, nos pequenos atos. Apesar disso, foi para a carreira militar pois precisava de uma vida estável, ter uma base para constituir sua própria família. Um pisciano com porte de lutador, vigoroso, alegre, sociável, gentil e carinhoso. Inspirava proteção e segurança mas também era gatilho de aventura, risco, sonho, viagem. Manifestava apenas às crianças, uma face de contracultura. 

Acredito que nem meu pai sabia sobre sua família natural, e por respeito aos meus avós, os pais adotivos, mantiveram o véu. Esta pessoa desencaixada de suas duas famílias, morreu 'jovem' aos 48 anos (faço 48 este ano). A luta interna não encontrou paz. A dor que ele carregava era profunda demais, vinha do útero violentado de sua mãe natural (segundo o campo sutil). Sabemos que a adoção aconteceu no interior do Rio de Janeiro. 

 

Eu só percebi que meu pai era mago após os trinta anos, quando comecei minha jornada de autoconhecimento. Era solitário em suas meditações, se fechava na garagem e ninguém podia entrar. Um dia, chegou chorando de alegria em casa e disse em segredo para as filhas: "Acabei de ver um elemental, um gnomo". Foram raras vezes que ele compartilhou algo assim, tão potente. Eu e minhas irmãs sabemos pouco sobre este lado oculto; era mais de ações do que palavras. Outra vez, ele nos mostrou uma dificílima posição de yoga, sempre longe da mamãe. Para nós, que nem sabíamos o que era "yoga", parecia um super-homem. Um super frágil homem, que não encontrou ou não soube criar espaço ou liberdade para compartilhar a profundidade da sua conexão com o mundo espiritual. Afinal, ele era um militar.

 

O impacto desta dicotomia me trouxe matéria, assunto, elemento de pesquisa. Desejo expressar uma natureza interna que ainda estudo, mas já escolhi a ferramenta: o absurdo. Diferente da experiência de meu pai, o meu exótico será apresentado, 'ativista cósmica'. Quando voltei a me dedicar à vocação de artista, encontrei nessa biblioteca imóvel um tesouro. Como disse Krenak, viver 'sem nada' é muito diferente de viver 'com nada'. Foi sem ter opção, com este nada na estante da sala na Rua Tupi, que brotaram muitos recursos. Papéis envelhecidos, imagens, palavras, símbolos. Eu não li os livros em ordem cronológica ou na íntegra; devorava apenas algumas páginas como um esfomeado que não escolhe a comida.

 

Depois de desfolhar livros Rosacruz por 10 anos, começo agora a olhar o acervo militar. Ambos os objetos têm aura imaculada, um 'não toque'. Com o fantasma da Guerra Fria nos assombrando novamente, com o genocídio em Gaza e a ruína do Império Americano trazendo tantas revelações pessoais e geopolíticas... encontro o momento de olhar para a infância e adolescência na Escola de Sargento das Armas. Lidar com as contradições de minha própria família. A aversão que desenvolvi não só ao poderio militar, mas também à militarização da nossa subjetividade.

​Juliana Freire, São Paulo, 24 de junho de 2025

Colagem, nanquim, ecoline, costura sobre papel antigo e livro militar

30 cm de altura x 22,5 cm de largura

 

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